quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Boas introduções são necessárias


As boas introduções são um bem maior para entrar num domínio mais sofisticado. Sem elas é muito mais difícil trilhar caminhos futuros numa aprendizagem. Existem introduções muito elementares e básicas que servem de mapa para quem deseje, em pouco tempo, apanhar algumas pontas de uma determinada área. Essas, apesar de essenciais, muitas das vezes deixam escapar algumas subtilezas básicas sem as quais não se chega a compreender verdadeiramente a relevância de uma aprendizagem. Mas existem introduções que são um pouco mais sofisticadas sem deixar de lado esse caráter introdutório. Tanto servem aos neófitos como a estudantes, professores ou até estudantes de cursos universitários. É nesta última categoria que se insere a introdução de Stephen Hetherington, Realidade e Conhecimento, Uma Introdução à Metafísica e à Epistemologia, publicado pela Piaget e traduzido por Jorge Pinheiro no ano de 2007, sendo a tradução do original datado de 2003. Hetherington é um filósofo australiano. A Austrália é um bom país para a filosofia. Da última leva destaco relevantes filósofos como Peter Singer, David Oderberg ou David Chalmers e, claro, o próprio autor aqui destacado. Logo no título do livro vemos um pequeno apontamento na tradução, já que no original o título começa por ser qualquer coisa como: Reality? Knowledge? Philosophy!. E a pontuação, omitida na tradução portuguesa, não estará lá por acaso. Pesquisei e notei que o tradutor espanhol também não foi de todo fiel ao original. Felizmente este apontamento não prejudica, segundo a minha opinião, o conteúdo que se segue. Na verdade, tanto a metafísica como a epistemologia são já territórios filosóficos bastante amplos. Claro que vamos encontrar problemas relacionados com a filosofia moral ou o sentido da existência. Aqui são tratados pelo autor nos seus aspetos metafísicos mais gerais, bem como nas relações de proximidade com a filosofia do conhecimento que tomo como sinónimo de epistemologia.
O livro está organizado em 12 capítulos e como quase todas as introduções à filosofia, podem ser lidos ou consultados em separado, de acordo com os interesses e curiosidade do leitor. Além disso, como acontece em todas as boas introduções, está organizado como um manual de aprendizagem com pequenos questionários nos finais de capítulos e subcapítulos. Esses questionários são bastante úteis para estimular as aprendizagens. Para além disso, em todos os capítulos é apresentada uma bibliografia que funciona como atalho para uma exploração mais aprofundada.
Todos os capítulos apresentam várias teorias, por vezes bastante opostas, como ensaios de resposta aos problemas propostos.
Um pequeno itinerário do livro:
Capitulo I: a aprendizagem começa pelo famoso problema da conservação da identidade pessoal ao longo do tempo. O que é que faz com que uma pessoa seja a mesma ao longo do tempo? Que propriedades são constituintes dessa identidade?
Capitulo II: apresenta o problema do livre arbítrio. Como é que num universo causalmente determinado e explicado racionalmente pela causalidade, podemos afirmar que a nossa liberdade individual escapa a essa causalidade? Se escapa então pelo menos a nossa liberdade não está sujeita ao determinismo causal e se não escapa, então a liberdade individual não passa de uma ilusão da mente. E nesse caso, levantam-se outros e relevantes problemas, como o da responsabilidade individual pelas ações.
Capítulo III: neste capítulo é abordado mais um problema de compatibilidade, neste caso, entre a existência de um Deus sumamente bom e com poderes ilimitados e um mundo criado por Ele onde existe mal. Como resolver esta aparente incompatibilidade? A passagem de Sócrates, no seu diálogo com Eutifron, não escapa à análise do problema proposta por Hetherington.
Capítulo IV: O problema do sentido da existência? O que é que confere sentido à nossa existência? Propõe-se um encontro com as passagens mais clássicas para análise do problema, deste o mito de Sísifo até à máquina de experiências de Nozick.
Capítulo V: poderá a morte constituir uma ameaça assustadora ao sentido da vida? Como lidar com a finitude? Neste capítulo são explorados argumentos de autores contemporâneos como Jeff McMahan ou Thomas Nagel, mas também os clássicos Epicuro e Lucrecio.
Capítulo VI: como é que duas mesas brancas partilham de uma mesma propriedade como a brancura? Será que a “brancura” partilhada é uma propriedade independente dos objetos? Ou pertence aos objetos enquanto sua propriedade? Como definir o que é uma propriedade se tal for sequer possível? Existem propriedades que definam, por exemplo, o que é ser uma pessoa?
Capítulo VII: A toda a hora falamos em verdade por oposição a falsidade. Mas como é que é possível falar em tal coisa? O que é que caracteriza a verdade? Se houver múltiplos conceitos de verdade, então parece ser impreciso falar de tal coisa. Mas pelo contrário, se o conceito não é múltiplo, então o que o caracteriza? São aqui analisadas algumas das mais recentes teorias, de uma forma geral, mas correta e filosoficamente robusta, entre as quais, a teoria coerentista da verdade e a teoria da verdade como correspondência.
Capítulo VIII: quais são os critérios que nos permite defender que uma teoria está mais bem fundamentada que uma outra teoria rival? Um gato passa no outro lado da rua. Maria, que tem algumas dificuldades de visão e até cognitivas, mas não tem noção disso, formula a crença de que um gato passou no outro lado da rua. Joana, que tem uma visão e perceção sensorial apurada, mesmo que não saiba disso, vê um gato passar no outro lado da rua. Ambas têm a mesma crença. Mas como é que podemos confiar que uma crença é mais conhecimento que outra? Temos boas razões para confiar mais na crença de Joana do que na crença de Maria se as suas crenças fossem diferentes? Esta relação da confiança no conhecimento verdadeiro é explorada neste capítulo.
Capítulo IX: O que é que está na base do conhecimento? Isto é, o que é que fundamenta o conhecimento? Será que ao desejarmos explicar x entramos num movimento de regressão infinita de explicações? Neste capítulo, claramente debruçado sobre epistemologia, são analisados textos clássicos de Platão e Gettier.
Capítulo X: sabemos coisas porque as percecionamos sensorialmente. Mas a perceção sensorial é suficiente para um conhecimento sólido? O empirismo e David Hume em forte análise neste capítulo.
Capítulo XI: Depois do empirismo, o racionalismo. Será o conhecimento de verdades racionais, como as matemáticas, o fundamento de todo o conhecimento? Como é que é que podemos saber apenas pelo raciocínio determinadas verdades? Será fiável?
Capítulo XII: Depois da análise do empirismo e do racionalismo, faz todo o sentido a exploração do ceticismo. Neste capítulo explora-se a fase cética de Descartes e o ceticismo de Hume, assim como as várias respostas mais conhecidas ao ceticismo e à possibilidade do conhecimento.

Quem quer que inicie o estudo de filosofia por este livro considere-se com sorte. O livro apresenta os problemas tal qual eles são hoje em dia explorados e na melhor tradição da boa filosofia, é escrito de uma forma muito clara, sem perder o norte do rigor que a filosofia exige.
Não recomendo este livro para estudantes do ensino secundário. Mas é altamente recomendável para professores de filosofia do ensino secundário. Isto porque por um lado muitos dos problemas coincidem com o programa ministrado no ensino em Portugal e depois porque podem aproveitar muitos exemplos e partes do livro para explorar nas aulas, uma vez que está engenhosamente bem escrito e apresenta exemplos muito interessantes para os alunos. Seleciono apenas uma pequena passagem que pode ser aproveitada para apresentar o problema do livre arbítrio nas aulas:
Cap. II:
“imagine-se que uma pedra parte a nossa janela. Que mais deve incluir esta história? Dada a forma do mundo físico, assim que a pedra se aproximou, a janela não teve hipóteses de sobreviver intacta: o seu estilhaçamento foi provocado pelo impacte da pedra. Assim, em alguma fase da história do mundo, a fractura da janela tornou-se inevitável. Isso foi assim apenas quando a chegada da pedra se tornou iminente? Ou, cem anos antes, o mundo já estava a caminhar inexoravelmente para esse momento em que a dita pedra partiu a janela? Algures no passado, algo ocorreu para que sucedesse a morte da janela.”
p. 31
Ou, no Cap. IX
“Se não sabemos em que consiste o conhecimento, talvez não saibamos qual das nossas opiniões é conhecimento. Um ponto de vista não é conhecimento apenas por ser opinião de alguém. Nem todas as opiniões pessoais profundas são conhecimento; e ser-se culturalmente respeitado não é garantia da opinião de alguém ser conhecimento. Nem uma opinião é conhecimento apenas porque queremos que seja ou porque acreditamos ou afirmamos que é. Nem todos os pontos de vista são especialmente conhecíveis. Que garantia temos de o nosso ponto de vista pessoal ser bom nesse aspecto?”
p. 135
Qualquer uma destas passagens é muito útil para, numa aula, lançar os problemas. Claro que dependendo das opções de cada professor, depois pode-se selecionar alguns pontos das teorias e argumentos dos filósofos que exploram ensaios de resposta aos problemas.
Hoje em dia temos no mercado português boas introduções. Deixo apenas a recomendação à Piaget que continue a publicar estes livros tão bem-vindos ao público de língua portuguesa. Sem este tipo de obras disponíveis, o acesso ao conhecimento é muitíssimo mais limitado.
Agradeço à Editora Piaget que gentilmente enviou este livro para a minha apreciação.

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