sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Para os moralizadores, um texto de A. C. Grayling

Um homem que moraliza é geralmente um hipócrita.
oscar wilde
 
 
     Um moralizador é uma pessoa que procura impor aos outros a sua opinião sobre a forma como eles deviam viver e conduzir-se. Todos têm direito a ter uma opinião acerca daquilo que se pode considerar um comportamento aceitável, e todos têm o direito de a apresentar tão eloquente e veementemente quanto consigam. Mas os moralizadores vão muito mais longe. Querem que os outros se submetam às suas opiniões e procuram alcançar isto através da coerção — empregando meios que vão da desaprovação social ao controlo legal, constituindo este último muitas vezes a sua opção preferida. Ao obrigar os outros a agir de acordo com as preferências deles, revelam pelos menos algumas das seguintes características: insensibilidade, intolerância, falta de amabilidade, insuficiência de imaginação, incapacidade de compreender os sentimentos alheios, ausência de compreensão, ignorância relativamente à existência de interesses e necessidades alternativos na experiência humana e arrogância na convicção de que a sua forma de ver as coisas é a única aceitável. Justificam as suas acções dizendo que tentam defender os outros de eventuais danos, reivindicando assim não apenas um monopólio sobre o juízo moral, mas também o direito a decidir em nome dos outros o que é bom para eles.
     Quando os moralizadores atacam a legislação liberal sobre a homossexualidade, o aborto, a prostituição, a censura, a blasfémia, a bastardia e outras matérias semelhantes, estão a manifestar hostilidade relativamente a estilos de vida que lhes desagradam pessoalmente, e a tentar impor, no seu lugar, as suas próprias escolhas, geralmente sob a forma de uma fantasia tradicionalista, os «valores da família». Afirmam representar a maioria da opinião pública — um animal nada fiável que poucos deles desejariam representar noutras questões —, mas essa afirmação mais não é que uma manobra desonesta. Os seus verdadeiros motivos prendem-se com o temor que sentem relativamente a atitudes e práticas mais descontraídas do que eles se podem permitir a si mesmos — o seu acanhamento, as suas ansiedades religiosas, o seu medo de que eles próprios possam ser, digamos, homossexuais ou libidinosos, e todo um conjunto de outros motivos pessoais, levam-nos a impedir o resto do mundo de pensar, ver ou fazer o que eles próprios temem pensar, ver ou fazer.
     Quando o sistema político é imune aos moralizadores, eles surgem meramente a uma luz cómica — como pedantes e labregos que se queixam e acusam, batendo os pés e agitando guarda-chuvas em sinal de ultraje a tudo o que é diferente de si ou se aproxima demasiado dos seus próprios desejos culposos. Quando o sistema político não lhes é imune, passam a constituir uma ameaça, provocando não apenas uma inflamação e irritação gerais na sociedade, como também um sofrimento directo às pessoas cujos modos de vida diferem dos deles.
 
     Todas as gerações crêem viver uma crise. As coisas pioraram, dizem as pessoas estalando a língua: o número de crimes aumentou, a qualidade de vida diminuiu, o mundo deu em pantanas. As pessoas de pendor religioso inclinam-se a pensar que a época que vivem é tão má que provavelmente assinala o fim do mundo.
     Tais pensamentos são enganadores, pois têm como premissa uma crença em que algures no espaço ou no tempo o mundo possuiu algo que entretanto perdeu — uma época aconchegada, de chitas e cházinho à tarde, em que não havia perigo exterior nem mal-estar interior. Mas quando começamos a vasculhar estes mitos, buscando soluções para as aflições presentes — e isso é o que os moralizadores fazem — vemo-nos, então, verdadeiramente aflitos.
     Consideremos os que enaltecem os chamados «valores vitorianos» e afirmam que se pudéssemos regressar a eles conseguiríamos resolver os problemas da nossa sociedade supostamente isenta de valores morais. Dizem-nos que temos de fazer o que os vitorianos fizeram, acarinhando a vida familiar, o asseio e a religiosidade, trabalhando arduamente e defendendo a ordem. Na sua perspectiva, a virtude vitoriana tem como exemplo Mrs. Nubbles, a lavadeira viúva de Dickens, que fornecia o sustento dos seus três filhos numa casa que era extremamente pobre mas tinha, nas palavras de Dickens, um «ambiente de conforto», graças a «asseio e ordem». É simbolizada pelos Cratchits, reunidos para o seu «banquete» natalício pungentemente frugal. É condensada nos filantropos vitorianos que construíram bibliotecas e escolas. Aprendamos as lições aqui ilustradas, dizem os admiradores dos valores vitorianos, e tudo ficará bem.
     O jogo deles é posto a descoberto pelos seus indicadores de «ausência de moral» na sociedade. Um indicador frequentemente escolhido é a taxa crescente daquilo que um deles (a historiadora Gertrude Himmelfarb) ainda designa como «nascimentos ilegítimos». Isto dá provas de uma visão do vício completamente vitoriana e que é, portanto, uma petição de princípio. A própria noção de «ilegitimidade» é tão anacrónica que até nos faz duvidar de que os neovitorianos percebam os problemas que a sociedade moderna enfrenta. Nem a Igreja Anglicana fala já nestes termos. Efectivamente, nada há de remotamente errado no nascimento de crianças fora do casamento, mas tudo há de errado em criar crianças no seio da pobreza. Não foram os casamentos que impediram milhões de crianças vitorianas de se verem tolhidas física e educacionalmente devido às iniquidades e desigualdades existentes na sua sociedade, em que a pobreza era opressiva, as ruas de Londres eram muito mais perigosas do que hoje em dia e as forças do mercado tornavam a prostituição infantil um dos maiores empregadores de trabalho infantil da capital.
     Aos que, de entre nós, detêm uma posição confortável na cadeia alimentar, agrada imenso a ideia de aqueles que se encontram numa posição inferior se comportarem bem, permanecerem calados, serem respeitadores e asseados, levarem vidas ordeiras, sóbrias, auto-suficientes e auto-sustentadas, mantendo os filhos na ordem e acorrentando-se à disciplina férrea das hipotecas imobiliárias, de forma a não poderem deixar de sair diariamente para o trabalho, seja qual for o salário recebido. Agrada-nos porque significa que pagamos menos impostos (porque há menos crimes e subsídios a pagar), permitindo-nos, assim, desfrutar mais amplamente da nossa posição privilegiada. Ou seja, impingimos a moral pessoal aos outros porque isso serve os nossos fins.
     Mas instar os indivíduos a agirem moralmente raramente funciona. A solução neovitoriana para o crime consiste em persuadir as pessoas a serem asseadas e religiosas: imagine-se a resposta desabrida que se obteria ao sugerir tal coisa a um ladrão. A única forma verdadeiramente prática de conseguir uma sociedade boa passa por uma moral partilhada, isto é, uma concepção — alcançada através do debate e da reflexão no nosso melhor espírito de bom senso tolerante — da forma como, enquanto sociedade, podemos dirigir as nossas vidas para a justiça e a decência. A pobreza, a ignorância, a doença, a desvantagem social e o crime não são apenas maus em si; desperdiçam os recursos da comunidade. Combatê-los requer imaginação e determinação, mas requer igualmente investimento em capital. A solução neovitoriana é desejar em vão que os pobres, os ignorantes e os criminosos leiam Samuel Smiles e se tornem melhores por si mesmos. Nesta altura — ao olharmos para as ruas das grandes cidades onde os mendigos estendem as mãos como nos bons velhos tempos vitorianos, dormem às portas das lojas e recorrem ao crime no seu desespero —, já devíamos saber que a exortação moral não constitui, por si, a solução.

A. C. Grayling, O significado das coisas, Gradiva, Trad. Mª Fátima  St. Aubyn

1 comentário:

Anónimo disse...

Isto é Filosofia Aplicada, Rolando.

Abraço.