sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Como é que ensino filosofia? Parte 2



Inteirar-me das turmas e horário – preparar as primeiras aulas com critérios de avaliação e regras gerais de funcionamento da aula e da disciplina.


Tomar conhecimento das turmas e anos que vou leccionar é o passo seguinte. Logo no primeiro dia de aulas posso inserir mais dados no portfólio e organizar as turmas nas folhas de cálculo. Durante as primeiras semanas de aulas esta é uma tarefa quase diária uma vez que leva algum tempo até que as turmas se organizem completamente. Há alunos que desistem, outros que são transferidos, etc.

A primeira aula pode ser decisiva. Durante todos estes anos de ensino ouvi as mais variadas histórias sobre a primeira abordagem aos alunos. Estou consciente que não existe um método que acerte completamente e um mesmo método pode ser bom nuns casos e falhar noutros. Mas seja qual for o método não há nenhum que acerte completamente, nem outro que falhe completamente. Para esta primeira abordagem conto também com a minha personalidade. Cada professor deve seguir a sua.Parece-me mau mostrar uma personalidade que não se tem. A informalidade, mas séria e com método pode ser a linha principal orientadora. O objectivo é iniciar um trabalho de leccionação com estudantes adolescentes e, acima de tudo, convém ser firme, mas saber contornar a firmeza em alguns momentos. Mas não se pode de alguma forma quebrar a firmeza nos critérios de avaliação. Passo os primeiros 90 minutos com cada turma a clarificar muito bem como vão ser avaliados ao longo do ano e, em regra, marco logo as datas dos testes para o ano inteiro. Explico muito bem, fazendo-me acompanhar de uma grelha aprovada em grupo, do que se avalia em filosofia e como se avalia. Explicito o que é que se avalia nas atitudes e valores numa aula de filosofia. Pode-se recorrer a uma margem relativa de negociação e o próprio programa deve contemplar essa margem, mas em última instância cabe ao professor decidir e não aos alunos sob pena de se instalar a confusão. A experiência diz-me que os alunos não gostam nem de professores demasiado autoritários, nem demasiado permissivos, pelo que encontrar o meio termo é a tarefa destas primeiras aulas.

Em alguns casos consigo cumprir com este ponto em metade do tempo da aula e, nesses casos, avanço logo para a ficha diagnóstico. Com esta ficha começo a ter uma primeira ideia da capacidade de cada aluno em aplicar técnicas de raciocínio. Em regra faço esta ficha com pequenos exercícios de raciocínio e algumas questões de resposta curta. No 10º ano temos adoptado o Arte de Pensar que é um manual que rentabilizo muito mais que qualquer outro e, nesse caso, recorro à ficha que vem com o manual.

Se for o caso desta ficha passar para a segunda aula dou somente metade da aula para a sua realização e aproveito a outra metade para fazer a primeira abordagem ao programa. De um modo muito superficial informo os alunos sobre as unidades a estudar.

Nestas primeiras aulas surgem questões habituais dos alunos. Se o professor é exigente nas notas finais, se faz testes difíceis e, para as turmas do 10º ano, se a disciplina é difícil. Também para estas respostas é necessário recorrer ao bom senso. Em regra respondo sempre que me considero um professor exigente comigo mesmo, pelo que é natural que exija trabalho e empenho dos alunos para alcançarem bons resultados. Em relação aos testes informo os alunos que eles não são difíceis já que não recorro às famosas ratoeiras. O teste não é para apanhar o aluno em falso, mas é um momento importante da sua avaliação, o momento em que o aluno pode mostrar que conhece as matérias e que sabe pensar sobre elas. Mas também é verdade que o bom senso indica-me que devo desdramatizar um pouco os testes. Como é que o faço? Os nossos alunos estão habituados a que os testes difíceis representem algumas coisas, nomeadamente:


- Perguntas rasteira;


- Dezenas, muitas vezes chega a uma centena, de páginas para ler;


- Decorar o que estão a ler.


E é aqui que a minha intervenção começa a desdramatizar os testes. Não vai ser necessário ler centenas de páginas, nem decorar o manual, muito menos as perguntas rasteira. Não podemos esquecer que os estudantes tem 4 ou 5 disciplinas que lhes pede mais tempo de estudo. Se cada uma delas remeter para 70 ou 90 páginas de estudo para a realização de um só teste, isso significa que a maioria dos estudantes não têm sequer tempo de compreender e assimilar conteúdos. Os professores queixam-se habitualmente que os alunos não têm hábitos de leitura formados. Ora, é contra producente pedir a quem não tem grandes hábitos de leitura, que leia cerca de 50 páginas para um só teste. Isto multiplicado por 5 disciplinas, por exemplo, dá 250 páginas. É muito? Não. Mas é igualmente verdade que jovens que não tem os tais hábitos de leitura não se vão pôr a ler 250 páginas para realizar os primeiros testes. É mais sensato remeter no máximo o estudo de umas 20 páginas por teste. Isto se tivermos presente que compreender um conteúdo leva demasiado tempo a um jovem. O que se pede ao estudante é que trabalhe um pouco, passo a passo e sobretudo consiga aplicar as técnicas do raciocínio filosófico. Para além de tudo um dos momentos de avaliação, no terceiro período, é a redacção do ensaio argumentativo e aí sim o aluno vai ter de ler mais alguma coisa (ainda que muito longe da centena de páginas).


Estas são dificuldades que enfrentamos no início do ano. Os alunos estão habituados a ter de ler para decorar. Ora, estudar não é isso, ainda que tal seja o resultado de um ensino que ainda carrega o peso do formalismo do passado, pelo menos nos cursos gerais. Nestas primeiras aulas é necessário muito cuidado para explicar pacientemente aos alunos como se estuda e trabalha em filosofia. Muitas das vezes, quando tal se faz sentir necessário, há que aplicar aqui uma estratégia que traz sempre bons resultados. Arranja-se um bom texto argumentativo, acessível a estudantes de secundário e leva-se para a aula. Começa-se por explicar que se vai ensinar a estudar filosofia. Aí já se pode começar a trabalhar a tese, razões que apoiam a tese e a conclusão, que são pequenos elementos indispensáveis a um bom ensino da filosofia e que muitos estudantes não dominam. Para alunos do 10º ano esta tarefa tem enormes vantagens. É que os alunos começam desde cedo a perceber que não vão decorar textos, mas sim discutir problemas, aqueles que os textos levantam. É certo que não é do pé para a mão que se motiva logo no início uma turma de 20 alunos, mas nós somos professores, não somos profetas e como tal não os podemos salvar a todos. E também devo considerar que aparecem muitos contra tempos principalmente no início: alunos chico espertos que interrompem para mandar piadas marginais, outros que pedem para ir à casa de banho a ver se cola e outros ainda que querem é falar e tentam desviar o assunto para aquilo que lhes interessa. A regra a seguir sempre é a da firmeza e atacar logo estes problemas na 1ª aula. Ninguém vai à casa de banho (a experiência mostra-me que os pedidos de ida à casa de banho ocorrem com muita frequência nas primeiras semanas de aula e ao fim de 1 mês desaparecem quase por completo se o professor for firme) e aos chico espertos já lhes explicamos que as atitudes e valores a avaliar em filosofia é o saber ouvir o outro, sem o ironizar no mau sentido e sobretudo saber participar activamente nas discussões. Ainda há outros contra tempos que me lembro, como aqueles alunos que estão com o caderno novo e esferográfica na mão e ficam zangados se o professor não passar metade da aula a ditar apontamentos. O ensino não tem só coisas boas e muitas mais vezes que as desejáveis, cria maus hábitos nas pessoas.

O próximo post mostra como entro no trabalho duro. Fica para amanhã.

2 comentários:

João Silva disse...

Saudações!

Caro Rolando,
o seu texto é bastante interessante, principalmente para aqueles que não são professores, como eu. Gostei em particular dos seus apontamentos relativamente à psicologia da primeira aula.

Se me permite, faço-lhe uma recomendação: não faça perguntas muito pessoais aos alunos, principalmente nas primeiras aulas. Por perguntas pessoais, entenda-se indagar pela profissão dos pais, pelas habilitações dos tios, irmão e primas, etc. Quase todos os professores fazem isso (não que eu saiba ou suspeite que o faça) e não acho que façam bem. Isso não contribui para que o aluno aprenda mais e só tem como consequência deixar alunos de classes sociais mais baixas pouco à vontade.
Uma dica: se der fichas a ser preenchidas pelos alunos com as suas informações pessoais, dê uma ficha individual a cada um. Evita assim coscuvilhices e consegue respostas mais sinceras.

Cumprimentos!

Rolando Almeida disse...

Olá João,
Não me parece que seja de todo comum que os professores façam essas perguntas. A não ser os directores de turma que em regra recolhem essas e outras informações por vezes muito úteis para fazer o retrato social da turma já que é com base nele que se começa a trabalhar. E há também outras informações pessoais que o director de turma deve dominar como questões relacionadas com a saúde.
O que diz em relação à profissão dos pais tem um fundo de verdade, mas repare, em todos os lugares da nossa sociedade a mania das habilitações, do doutor e do engenheiro costumam estar presentes. É um preconceito tolinho que ainda não abandonamos por completo. E é certo que alguns professores não estejam alheios a esses preconceitos.
abraço